Polissemia de humanidade
Entre crueldade e empatia, relações parassociais com autores e dores de cabeça, ser humano é complexo
Por muito tempo, e nisso entenda os últimos dez anos, eu utilizei a expressão "humano” para definir algo que eu considero simpático, empático, sensível e, de alguma forma, real. “Olhe como esta obra é humana”, em especial, é uma frase que tenho certeza que já apareceu em muitas conversas minhas ao longo da última década.
Mas ás vezes rolam uns choques de realidade curiosos quando a gente menos espera, nos lançando em espirais de pensamentos e conexões que vão gerando questionamentos sobre tudo. No meu caso, ao falar com um amigo, ele soltou o clichê de “errar é humano”, e por algum motivo a frase virou um verdadeiro acidente nas minhas vias cognitivas.
Tenho certeza, inclusive, que não foi a primeira vez que ouvi ela! Mas acho que ando um pouco mais reflexivo sobre muitas coisas, inclusive sobre minha relação com quem cria as coisas que gosto — o que levou a frase a ter um impacto suficientemente grande para eu decidir tirar a poeira do meu médium (ou criar um Substack, depende do que eu decidir quando a escrita acabar).
Relações parassociais, épocas e “humanidade”
Há muitos anos atrás, acho que lá por 2012 quando eu ainda estava no segundo ano do ensino médio, lembro de ter entrado em uma discussão um tanto intensa com um amigo sobre a escravidão. Eu, em minha imensa ignorância adolescente, afirmava que nos séculos antes da abolição a pratica era “normal”, enquanto o meu colega, mais velho e com muita paciência, afirmava que esse nunca foi o caso.
Doze anos depois é fácil entender o quão errado eu estava. Afirmar que uma prática cruel e desumana era “normal" implica que as pessoas eram diferentes, sendo que não. Somos a mesma espécie até hoje, e a luta por direitos sempre esteve ali presente — mesmo que quem tivesse o poder não estivesse nela.
A justificativa, muito vista por ai, que a humanidade como um todo evoluiu para aceitar as diferenças melhor no Séc. XI (essa por si só uma colocação extremamente errada, afinal quantos crimes de ódio são denunciados diariamente?) é de um absurdo tremendo. Existem movimentos/artigos pró-direitos LGBT datados desde a Alemanha de 1897 (como descrito neste excelente artigo da Digital Encyclopedia of European History), então como podemos falar que a homofobia era normal nos anos 1930? Ela não era, já era algo terrível e cruel, assim como a escravidão e qualquer outro movimento — no fundo, só tentamos justificar a crueldade de pessoas que viveram nessas épocas, por algum estranho respeito com antepassados que, muito possivelmente, estariam cometendo atrocidades tivessem eles os recursos para isso.
Nisso, pulamos para os anos atuais e nossa relação com arte como um todo — e por arte, falo videogames, livros, filmes, música e o que mais você achar que se encaixa aqui. Gostar de algo tornou-se um processo muito mais complexo do que só curtir a obra, com muitas vezes o olhar ao autor e a idealização dele tornando-se tão importante quanto aproveitar a produção.
Nessa brincadeira, é comum criamos mesmo inconscientemente uma relação parassocial com os responsáveis pelas nossas obras favoritas, e isso pode se desencadear até mesmo para uma certa idolatria — muitas vezes ainda alimentada por visões pessoais nossas que colocam na costa do autor ações e ideologias que nunca foram nem comentadas por ele.
O caso que mais me vem a cabeça é o de “One Piece”, em que uma gigantesca parcela de fãs encontram subtextos de esquerda na obra sendo que não há evidências que Eiichiro Oda tem esse viés — sendo que, termos utilizados para descrever personagens LGBT na obra são vistas como problemáticas por estudiosos de linguagem, e algumas ações do autor em sua vida pessoal parecem apontar para algo bem diferente dessa visão do fandom (inclusive deixo aqui a recomendação deste excelente texto da Laura sobre o assunto, para uma perspectiva um tanto mais aprofundada da situação).
Mas certo, qual a relação de tudo isso com a polissemia de “Humano” que citei na introdução? A conclusão que cheguei, no fim, é que usar essa palavra é, de certa forma, uma tentativa de passar um pano nas ações das coisas ao nosso redor:
Falar que, por exemplo, homofobia era normalizada 70 anos atrás ealgo que pertencia a humanidade como um todo é uma tentativa de retirar a culpa de atrocidades cometidas por pessoas generalizando uma ação que colocava em risco a vida de milhões de pessoas já naquela época — servindo muito mais como um esforço para manter uma imagem limpa dos canalhas do que qualquer outra coisa;
Dizer que “One Piece” é de esquerda sem nenhuma prova real da intenção de Oda quanto a mensagem e o tom do Oda sobre a mensagem da obra é projetar ao máximo uma relação com o autor, de forma parassocial, para encará-lo como um aliado — mesmo que evidências possam levar a outras interpretações.
Em um exagero lógico aqui, é muito comum depois que um amigo faz uma merda a gente falar que “errar é humano” e ao mesmo tempo, quando alguém demonstra empatia, falar que ele é uma pessoa muito “humana”. Jogar uma característica boa ao significado da existência da espécie assim como tentar falar que erros, muitas vezes terríveis, também fazem parte dela é uma visão no fim simplificada e que denota uma simplicidade não compatível com os reais desafios da racionalidade, ao meu ver.
No fim, a humanidade, como um todo, é tudo de ruim e tudo de bom que existem nesse mundo. Se um dia Shigesato Itoi, meu autor favorito, cometer um crime horrendo ficarei triste, mas ele tem sua própria vida e ele utiliza ela da forma que lhe convém. Qualquer expectativa que eu tiver em relação a ele é algo parassocial de minha parte, e mesmo a decepção de ver ele se tornando um babaca, no fim, é muito mais sobre eu do que ele.
Palavras bonitas são fáceis de serem escritas, mesmo que as mãos do autor estejam deixando marcas de sangue pelo teclado. No fim, a tal humanidade deve ser vista como uma grande história em que os detalhes sórdidos e cruéis não devem ser escondidos, mas sim espalhados para que todos tenham consciência do que já fizemos e podemos voltar a fazer — mas ocultar ou tentar diminuir o impacto dos pontos negativos parece também estar no nosso DNA, o que torna tudo mais difícil.
Enfim. Se você chegou até aqui, obrigado pela atenção. Espero que a leitura tenha sido boa.